Um dos grandes mistérios da humanidade é entender como uma mesma coisa pode despertar paixões tão diferentes nas pessoas. Vejamos o caso do MST. Recentemente, a imprensa e a sociedade como um todo voltaram a discutir o papel dos sem-terra dentro da sociedade brasileira. O ponto inicial da discussão foi uma declaração do ministro Gilmar Mendes, presidente do STF.
O ministro falou, logo depois de uma série de ocupações de terra no período de carnaval, que o MST cometia ilícitos, e que portanto não poderia receber verbas públicas. Muita gente publicou artigos aproveitando a deixa e classificando o MST como um movimento criminoso. O clima era mais do que propício para isso: numa das ocupações, em Pernambuco, os sem-terra haviam matado quatro seguranças. Alegaram legítima defesa, argumento que não convenceu nem mesmo o presidente Lula.
Para muita gente, portanto, o MST é um movimento a ser repudiado. Mas não para todos. “O maior e mais importante movimento social do mundo”. Essa é a definição do MST de acordo com o linguista norte-americano Noam Chomsky. E, atenção: o ponto de vista de Chomsky não é nada desprezível. Uma eleição recente, com mais de 20 mil eleitores, feita pela revista britânica Prospect, o colocou como o mais importante intelectual do mundo. Teve o dobro de votos do gigante italiano Umberto Eco, segundo colocado na votação.
Chomsky não está sozinho na sua opinião. Muita gente séria acha o MST importante, mesmo indispensável, para a evolução da questão agrária no Brasil e no mundo. Mas por que os pontos de vista podem ser tão diferentes?
O que o MST tem de mais atraente para muitos intelectuais é exatamente aquilo que incomoda o ministro Gilmar Mendes: a sua capacidade de contestação da ordem estabelecida. Daquilo que damos como líquido, certo e imutável. Inclusive, da lei. O MST é, por sua natureza, contestador.
Gilmar Mendes, em sua declaração, agiu como defensor do texto legal. Aquilo que é proibido pela lei nacional não deve acontecer. Ponto. O papel de um intelectual, porém, é muito mais complexo do que isso. Um pensador - e nós, como cidadãos, temos o dever de pensar, sempre, antes de falarmos - deve questionar todo o contexto de uma situação. E aqui, a lei deixa de ser algo escrito em pedra. Ela é parte da equação a ser pensada.
A distribuição de terras no Brasil é, e sempre foi, problemática. O fato de um dos maiores proprietários rurais do país não existir - e ser, na verdade, um “fantasma” com CPF falso usado por grileiros para esconder sua face - diz muito sobre nossa realidade agrária. Há muita concentração de terras. E muita exclusão.
A lei brasileira sobre o tema não é necessariamente ruim. A Constituição inclusive aborda o problema com propriedade. Mas isso, por si só, não fez a reforma agrária andar. E os ruralistas, que dominam um terço do Congresso Nacional, não vão cobrar em público que a lei seja cumprida nesse ponto. Quem faz essa cobrança é o povo. São os próprios sem-terra. Não fosse pela pressão do MST, não fosse pelas ocupações de terra, não fosse pelo questionamento, o assunto continuaria, certamente, a ser jogado para debaixo do tapete, como tantos outros na história nacional. Os pobres continuariam sem acesso à terra. E os latifúndios improdutivos continuariam sendo apenas mais uma maneira de se especular financeiramente. A terra não teria
função social.
Às vezes, alguém no MST comete excessos, como ocorreu em Pernambuco. Mas a história da instituição é maior do que isso. Quem deve ser punido é quem cometeu o crime, não todos os milhares que compõem esse movimento.
Que, não esqueçamos, para o maior intelectual do planeta, é “o maior e mais importante movimento social do mundo”.
Gazeta do Povo, 14.03.2009, Artigo de Rogério Waldrigues Galindo