terça-feira, 26 de junho de 2012

Majuro Santayana (Jornal do Brasil): O golpe em Assunção e a tríplice fronteira

A moderação dos Estados Unidos, que dizem estranhar a rapidez do processo de impeachment do presidente Lugo, não deve alimentar o otimismo continental. Em plena campanha eleitoral, a equipe de Obama (mesmo a senhora Clinton) caminha com cautela, e não lhe convém tomar atitudes drásticas nestas semanas. Esta razão os leva a deixar o assunto, neste momento, nas mãos da OEA. Na verdade, se as autoridades de Washington não ordenaram a operação relâmpago contra Lugo, não há dúvida de que o Parlamento paraguaio vem sendo, e há muito, movido pelo controle remoto do Norte.

E é quase certo que, ao agir como agiram, os inimigos de Lugo contavam com o aval norte-americano. E ainda contam. Conforme o Wikileaks revelou, a embaixada norte-americana informava a Washington, em março de 2009, que a direita preparava um “golpe democrático” contra Lugo, mediante o Parlamento. Infelizmente, não sabemos o que a embaixada dos Estados Unidos em Assunção comunicou ao seu governo depois e durante toda a maturação do golpe: Assange e Meaning estão fora de ação. 

Não é segredo que os falcões ianques sonham com o controle da Tríplice Fronteira. Não há, no sul do Hemisfério, ponto mais estratégico do que o que une o Brasil ao Paraguai e à Argentina. É o ponto central da região mais populosa e mais industrializada da América do Sul, a pouco mais de duas horas de voo de Buenos Aires, de São Paulo e de Brasília. Isso sem falar nas cataratas do Iguaçu, no Aquífero Guarani e na Usina de Itaipu. Por isso mesmo, qualquer coisa que ocorra em Assunção e em Buenos Aires nos interessa, e de muito perto.

Não procede a afirmação de Julio Sanguinetti, o ex-presidente uruguaio, de que estamos intervindo em assuntos internos do Paraguai. É provável que o ex-presidente — que teve um desempenho neoliberal durante seu mandato — esteja, além de ao Brasil e à Argentina, dirigindo suas críticas também a José Mujica, lutador contra a ditadura militar, que o manteve durante 14 anos prisioneiro, e que vem exercendo um governo exemplar de esquerda no Uruguai.

Não houve intervenção nos assuntos internos do Paraguai, mas a reação normal de dois organismos internacionais que se regem por tratados de defesa do estado de direito no continente, o Mercosul e a Unasul — isso sem se falar na OEA, cujo presidente condenou, ad referendum da assembleia, o golpe parlamentar de Assunção.

É da norma das relações internacionais a manifestação de desagrado contra decisões de outros países, mediante medidas diplomáticas. Essas medidas podem evoluir, conforme a situação, até a ruptura de relações, sem que haja intervenção nos assuntos internos, nem violação aos princípios da autodeterminação dos povos.

A prudência — mesmo quando os atos internos não ameacem os países vizinhos — manda não reconhecer, de afogadilho, um governo que surge ex-abrupto, em manobra parlamentar de poucas horas. E se trata de sadia providência expressar, de imediato, o desconforto pelo processo de deposição, sem que tenha havido investigação minuciosa dos fatos alegados, e amplo direito de defesa do presidente.

Registre-se o açodamento nada cristão do núncio apostólico em hipotecar solidariedade ao sucessor de Lugo, a ponto de celebrar missa de regozijo no dia de sua posse. O Vaticano, ao ser o primeiro a reconhecer o novo governo, não agiu como Estado, mas, sim, como sede de uma seita religiosa como outra qualquer.

O bispo é um pecador, é verdade, mas menos pecador do que muitos outros prelados da Igreja. Ele, ao gerar filhos, agiu como um homem comum. Outros foram muito mais adiante nos pecados da carne — sem falar em outros deslizes, da mesma gravidade — e têm sido “compreendidos” e protegidos pela alta hierarquia da Igreja. O maior pecado de Lugo é o de defender os pobres, de retornar aos postulados da Teologia da Libertação.

Lugo parece decidido a recuperar o seu mandato — que duraria, constitucionalmente, até agosto do próximo ano. Não parece que isso seja fácil, embora não seja improvável. Na realidade, Lugo não conta com a maior parcela da classe média paraguaia, e possivelmente enfrente a hostilidade das forças militares. Os chamados poderes de fato — a começar pela Igreja Católica, que tem um estatuto de privilégios no Paraguai — não assimilaram o bispo e as suas ideias. Em política, no entanto, não convém subestimar os imprevistos.

Os fazendeiros brasileiros que se aproveitaram dos preços relativamente baixos das terras paraguaias, e lá se fixaram, não podem colocar os seus interesses econômicos acima dos interesses permanentes da nação. É natural que aspirem a boas relações entre os dois países e que, até mesmo, peçam a Dilma que reconheça o governo. Mas o governo brasileiro não parece disposto a curvar-se diante dessa demanda corporativa dos “brasiguaios”.

No Paraguai se repete uma endemia política continental, sob o regime presidencialista. O povo vota em quem se dispõe a lutar contra as desigualdades e em assegurar a todos a educação, a saúde e a segurança, mediante a força do Estado. Os parlamentos são eleitos por feudos eleitorais dominados por oligarcas, que pretendem, isso sim, manter seus privilégios de fortuna, de classe, de relações familiares.

Nós sofremos isso com a rebelião parlamentar, empresarial e militar (com apoio estrangeiro) contra Getulio, em 1954, que o levou ao suicídio; contra Juscelino, mesmo antes de sua posse, e, em duas ocasiões, durante seu mandato. Todas foram debeladas. A conspiração se repetiu com Jânio, e com Jango — deposto pela aliança golpista civil e militar, patrocinada por Washington, em 1964.

A decisão dos países do Mercosul de suspender o Paraguai de sua filiação ao tratado, e a da Unasul de só reconhecer o governo paraguaio que nasça das novas eleições marcadas para abril, não ferem a soberania do Paraguai, mas expressam um direito de evitar que as duas alianças continentais sejam cúmplices de um golpe contra o estado democrático de direito no país vizinho.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Mauro Santayana (Jornal do Brasil): A crise no Paraguai e a estabilidade continental


Toda unanimidade é burra, dizia o filósofo nacional Nelson Rodrigues. Toda unanimidade é suspeita, recomenda a lucidez política. A unanimidade da Câmara dos Deputados do Paraguai, em promover o processo de impeachment contra o presidente Lugo, seria fenômeno político surpreendente, mas não preocupador se não estivesse relacionado com os últimos fatos no continente.

Na Argentina, a presidente Cristina Kirchner enfrenta uma greve de caminhoneiros, em tudo por tudo semelhante à que, em 1973, iniciou o processo que levaria o presidente Salvador Allende à morte e ao regime nauseabundo de Augusto Pinochet. Hoje, todos nós sabemos de onde partiu o movimento. Não partiu das estradas chilenas, mas das maquinações do Pentágono e da CIA. Uma greve de caminhoneiros paralisa o país, leva à escassez de alimentos e de combustíveis, enfim, ao caos e à anarquia. A História demonstra que as grandes tragédias políticas e militares nascem da ação de provocadores.

No caso, foram o latifúndio paraguaio — não importa quem disparou as armas — e os interesses norte-americanos. Com o golpe, os ianques pretendem puxar o Paraguai para a costa do Pacífico, incluí-lo no arco que se fecha, de Washington a Santiago, sobre o Brasil. Repete-se, no Paraguai, o que já conhecemos, com a aliança dos interesses externos com o que de pior há no interior dos países que buscam a igualdade social. Isso ocorreu em 1954, contra Vargas, e, dez anos depois, com o golpe militar.O Paraguai, neste momento, faz o papel do jabuti da fábula maranhense de Vitorino Freire. Ele é um bicho sem garras e sem mobilidade das patas que o faça um animal arbóreo. Não dispõe de unhas poderosas, como a preguiça, nem de habilidades acrobáticas, como os macacos. Quando encontrarmos um quelônio na forquilha é porque alguém o colocou ali.

Não podemos, nem devemos, nos meter nos assuntos internos do Paraguai, mas não podemos admitir que o que ali ocorra venha a perturbar os nossos atos soberanos, entre eles os compromissos com o Mercosul e com a Unasul. Mais ainda: em consequência de uma decisão estratégica equivocada do regime militar, estamos unidos ao Paraguai pela Hidrelétrica de Itaipu. O lago e a usina, sendo de propriedade binacional, se encontram sob uma soberania compartida, o que nos autoriza e nos obriga a defender sua incolumidade e o seu funcionamento, com todos os recursos de que dispusermos.

Esse é um aspecto do problema. O outro, tão grave quanto esse, é o da miséria, naquele país e em outros, bem como em bolsões no próprio território brasileiro. Lugo pode ter, e tem, todos os defeitos, mas foi eleito pela maioria do povo paraguaio. Como costuma ocorrer na América Latina, o povo concentrou seu interesse na eleição do presidente, enquanto as oligarquias cuidaram de construir um Parlamento reacionário. Assim, ele nunca dispôs de maioria no Congresso, e não conseguiu realizar as reformas prometidas em campanha.

Lugo tem procurado, sem êxito, resolver os graves problemas da desigualdade, da qual se nutriram líderes como Morínigo e ditadores como Stroessner. Por outro lado, o Parlamento está claramente alinhado aos Estados Unidos — de tal forma que, até agora, não admitiu a entrada da Venezuela no Tratado do Mercosul.

O problema paraguaio é um teste político para a Unasul e o conjunto de nações do continente. As primeiras manifestações — entre elas, a da OEA — são as de que não devemos admitir golpes de Estado em nossos países. Estamos, a duras penas, construindo sistemas democráticos, de acordo com constituições republicanas, e eleições livres e periódicas.

Não podemos, mais uma vez, interromper esse processo a fim de satisfazer aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos, associados à ganância do sistema financeiro internacional e das corporações multinacionais, sob a bandeira do neoliberalismo.

Os incidentes na fronteira do Paraguai com o Brasil, no choque entre a polícia e os camponeses que ocupavam uma fazenda de um dos homens mais ricos do Paraguai, Blas Riquelme, são o resultado da brutal desigualdade social naquele país. Como outros privilegiados paraguaios, ele recebeu terras quase de graça, durante o governo corrupto e ditatorial de Stroessner e de seus sucessores.

Entre os sem-terra paraguaios, que entraram na gleba, estavam antigos moradores na área, que buscavam recuperar seus lotes. Muitos deles pertencem a famílias que ali viviam há mais de cem anos, e foram desalojados depois da transferência ilegítima da propriedade para o político liberal. E há, ainda, uma ardilosa inversão da verdade.

A ação policial contra os camponeses era, e é, de interesse dos oligarcas da oposição a Lugo, mas eles dela se servem para acusar o presidente de responsável direto pelos incidentes e iniciar o processo de impeachment. É o cinismo dos tartufos, semelhante ao dosmoralistas do Congresso brasileiro, de que é caso exemplar um senador de Goiás.

Tudo pode ocorrer no Paraguai — e o que ali ocorrer nos afeta; obriga-nos a tomar todas as providências necessárias a fim de preservar a nossa soberania, e assegurar o respeito à democracia republicana no continente.Quando encerrávamos estas notas, a comissão de chanceleres da Unasul, chefiada pelo brasileiro Antonio Patriota, estava embarcando para Assunção a fim de acompanhar os fatos. Notícias do Paraguai davam conta de que os chanceleres não serão bem recebidos pelos que armaram o golpe parlamentar contra Lugo, e que se apressam para tornar o fato consumado — enquanto colunas do povo afluem do interior para Assunção a fim de defenderem o que resta do mandato de Lugo.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

O Brasil diante de dois inimigos (Mauro Santayana - Jornal do Brasil)

Em discurso recente no Senado, Pedro Simon advertiu contra o perigo de que o crime organizado se aposse das instituições do Estado. Até o caso Cachoeira, disse o parlamentar gaúcho, havia sido comprovada a corrupção de setores da burocracia dos governos, mas não a da estrutura do Estado.

O governador Marconi Perillo se esquivou, com habilidade, das questões mais graves, em seu depoimento na CPMI. Registre-se que ele se encontrava mais do que tranquilo, mesmo respondendo às indagações precisas do relator, até que chegou a vez do deputado Miro Teixeira. O experiente homem público, mesmo tendo como ponto de partida o caso menor, que é o da venda da casa de Perillo, deixou, na argúcia de suas perguntas, graves suspeitas.

Como pôde o governador receber o dinheiro de uma empresa e passar a escritura a um particular? Também ficou claro a quem ouviu o governador ser difícil que ele ignorasse as atividades ilícitas do apontado contraventor; ele conhecia, com intimidade, a sua vida empresarial, social e familiar.

Enquanto parte da opinião nacional acompanha, indignada, as revelações do esquema Cachoeira, articula-se eixo internacional entre os Estados Unidos, a Espanha e todos os países da Costa do Pacífico, com a exceção do Equador e da Nicarágua, contra o nosso povo, mediante a Aliança do Pacífico. Não há qualquer dissimulação.O caso Cachoeira — e a advertência de Pedro Simon é importante — mostra como a nação está acossada por um inimigo interno insidioso, que é o crime organizado. Os recursos públicos são desviados para alimentar um estado clandestino, que está deixando de ser paralelo, para constituir o núcleo do poder, em alguns municípios, em muitos estados e na própria União. Essa erosão interna da nacionalidade brasileira, que se assemelha a uma gangrena, coincide com o cerco internacional contra o nosso país.

Como informa a publicação Tal Cual, da oposição venezuelana, o foro funciona ativamente e já celebrou seis reuniões de alto nível. “Os quatro países signatários da nova Aliança do Pacífico — revela a publicação — têm, todos eles, governos de centro ou centro-direita, creem no capitalismo, são amigos dos Estados Unidos, e favorecem os tratados de livre comércio e o princípio do livre comércio em geral. Une-os sobretudo um temor comum e impulso defensivo frente à ascendente potência hegemônica ou neoimperial que é o Brasil”. E termina: “sentimo-nos satisfeitos e aliviados pelo surgimento do muro de contenção à expansão brasileira, que é a Aliança do Pacífico”.

Assim, os Estados Unidos cuidam de retomar a sua influência e presença militar na América Latina. Nesse sentido, procuram valer-se da Aliança do Pacífico para estabelecer bases militares cercando o Brasil, da Colômbia ao sul do Chile. Leon Paneta, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, acaba de acertar com o presidente do Chile, Sebastián Piñera, o estabelecimento de uma base norte-americana em Fuerte Aguayo, nas proximidades de Valparaíso.

Entre outras missões dos militares americanos está a de treinar os carabineiros chilenos, a fim de coibir manifestações populares. Há, ao mesmo tempo, uma orquestração da imprensa e dos meios políticos e empresariais, a fim de reabilitar a figura do ditador Pinochet.

Os Estados Unidos, que mantêm uma base no Chaco paraguaio, quiseram também ocupar o aeroporto de Resistência, na província argentina do Chaco, e o governador Capitanich assentiu, mas o governo de Cristina Kirchner vetou o acordo.

A participação da Espanha nesse novo cerco ao Brasil é evidente. Em Madri, os embaixadores dos quatro países maiores envolvidos (México, Colômbia, Peru e Chile) se reuniram, para defender a nova aliança, e coube ao embaixador do Chile, Sergio Romero, ser bem explícito. Ao afirmar que o bloco não nasce contra o Brasil, nem contra o Mercosul, aclara, no entanto, que o grupo recebe de braços abertos os investimentos europeus, especialmente da Espanha e dos Estados Unidos — que poderiam formalmente participar da Aliança.

Limpemos os nossos olhos, vejamos os perigos que ameaçam diretamente a nossa sobrevivência como nação independente, às vésperas do segundo centenário do Grito do Ipiranga. Não temos que ficar abrindo mais divisões internas, e devemos nos unir para enfrentar, ao mesmo tempo, o inimigo interno, que é o crime organizado e suas teias nas instituições do Estado, e os inimigos externos.

Esses, sempre que estivemos avançando no desenvolvimento social e econômico, procuraram quebrar as nossas pernas, contando com traidores brasileiros. Não é preciso recuar muito no passado. Basta lembrar o cerco contra Vargas, em 1954, a tentativa de golpe de 1955, repetida em 1961 e, por fim, o golpe de 1964, com as consequências conhecidas. Registre-se que, apesar da vinculação com os Estados Unidos, durante o governo Castelo Branco, e a famosa doutrina das “fronteiras ideológicas”, vigente durante o governo Médici, a partir de Geisel os militares brasileiros não mantiveram a mesma subserviência diante de Washington.

Enfim, espera-se que o Itamaraty mantenha o governo da senhora Dilma Roussef a par dessas manobras antibrasileiras, comandadas a partir de Madri e de Washington, e que a CPMI vá até o fundo, nas investigações em curso. Elas não devem parar nas imediações de Anápolis, mas chegar a todo o Brasil, conforme os indícios surjam. É bom conhecer a verdade do passado, mediante a Comissão formada para isso. Mas é também necessário conhecer a verdade do presente, e impedir que o crime tome conta das instituições nacionais, como está ocorrendo no México de Calderón.

E não nos devemos esquecer que o sistema financeiro mundial é também uma forma — superior e mais poderosa — de crime organizado. E muito bem organizado.



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